Leitura de fatos violentos publicados
na mídia
Ano 13, nº 10, 22/07/2013
A presença de práticas violentas na sociedade brasileira assumiu um grau
de profusão e gravidade que pode tornar as pessoas menos sensíveis às
“pequenas” formas de violência ou de violações de regras de convívio
necessárias à vida em sociedade.
O “tom social”
do momento está mais para a indiferença, o individualismo e alguma reserva de
substância gregária a ser gasta com “os merecedores” de atenção. Como a
coletividade excede a esta escassa matéria, os indivíduos tendem a não cultivar
a formação dos mais tênues laços de aproximação entre os seus
outros-permanentes. Muitos não sabem sobre seus vizinhos, sobre as pessoas que
encontram no ambiente de trabalho e assim por diante.
Talvez a falta
destas práticas possa comprometer a nossa capacidade de atuar na espécie de
caminho que a gente supõe ser o nosso, o próprio caminho, o exclusivo. No dia
17 de julho de 2013, o apresentador Varela veiculou em seu programa, Balanço
Geral, a história de um suicídio de uma senhora de 56 anos, moradora do bairro
de Itacaranha, situado no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Pelas informações
coletadas, ela teria recebido, bem cedo, um telefonema que informava da morte
do seu único filho. Posteriormente, saiu de casa e, na rua, derramou álcool no
corpo e ateou fogo. Depois de morta, o seu filho, que se encontrava no
trabalho, fora informado da tragédia e gritava desesperadamente diante das câmeras
de televisão, já sabendo que a sua mãe foi vítima de um trote.
Os vizinhos da
vítima informaram que ela era uma boa pessoa, morava ali fazia muito tempo e
não tinha qualquer problema de relacionamento com os moradores. Diante disso, o
apresentador classificou o caso como assassinato, cuja arma foi o telefonema. O
caráter insólito dessa classificação é característico de uma linguagem que
busca acionar uma representação já consolidada em torno dos casos noticiados.
E, infelizmente, nada mais consolidado do que as mortes por homicídio em
programas como o aqui referido. Desse modo, o homicídio assume o lugar genérico
de morte violenta, uma matriz de interpretação de outros tipos de mortes, tal
como a veiculada.
Esta sorte de
esclarecimento para o caso contribui para amenizar a possível inquietação do
público diante de uma história tão incomum. Entretanto, este alívio pode custar
a suspensão da possibilidade de uma reflexão sobre a nossa irresponsabilidade
para com os outros, os estranhos.
Ao mesmo tempo em
que adotamos comportamentos de recusa em presença do outro, em nossa intimidade
e resguardados de riscos, nós somos capazes de perturbar a quem nem conhecemos.
Esta disposição talvez seja resultado da crença de que sejamos o próprio bem e
que nada do que fazemos atinja ao outro de modo devastador, afinal, o violento
é o outro e nós somos os inofensivos.
Cabe, também,
acrescentar, ainda que hipotética, uma justificativa para o autor do trote,
relacionada com a postura inconsequente, aquela na qual a pessoa considera que
“apenas faz”, isto no caso em tela poderia ser assim representado: “afinal,
telefonar é crime? Eu não fiz nada, só dei um trote! Sabia lá que a mulher que
atendeu só tinha um filho? Como é que eu ia saber!?”
No contexto atual, é, praticamente, impossível que os brincalhões de mau gosto ocupem o banco dos réus por um trote. Cabe, entretanto, ter ao menos na fértil imaginação, que o outro que evitamos é humano-sensível. Ele ama, sofre, tem limites e motivos específicos para se manter vivo. Pode parecer de mau gosto, mas ele é igualzinho a nós.
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